Aula 3, Tópico 1
Em andamento

Aplicação dos princípios do direito sancionador

Aula - Progresso
0% Finalizado

Aplicação dos princípios do direito sancionador

Vamos dar continuidade à aplicação dos princípios do direito administrativo sancionador à ação de improbidade administrativa, conforme determina o art. 1º, §4º, da lei 8.429/92, alterado pela lei 14.230/21.

  • Princípio da irretroatividade, (art. 5º, inciso XL, CR/88)

Art. 5º. (...)

XL - a lei penal não retroagirá, salvo para beneficiar o réu;

Este é o princípio que está sendo o de aplicação mais polêmica.

Por este princípio, há a irretroatividade da aplicação da norma penal mais gravosa (incriminadora), sendo que, por outro lado, implica a retroatividade da norma penal mais benéfica (lex melius ou abolitio criminis). Embora o ato de improbidade administrativa não constitua crime (o art. 37, §4º, da CR/88, afasta a natureza de sanção penal), aplicam-se os princípios do direito administrativo sancionador, de sorte que o princípio em tela terá implicações para a nova lei 14.230/21.

Ad argumentandum, cita-se também a previsão do artigo 9º do Pacto de São José da Costa Rica (ou Convenção Americana de Direitos Humanos):

Ninguém poderá ser condenado por atos ou omissões que, no momento em que foram cometidos, não constituam delito, de acordo com o direito aplicável. Tampouco poder-se-á impor pena mais grave do que a aplicável no momento da ocorrência do delito. Se, depois de perpetrado o delito, a lei estipular a imposição de pena mais leve, o deliquente deverá dela beneficiar-se.

Questiona-se: a lei de improbidade administrativa poderia retroagir e apanhar fatos praticados sob a égide da Lei anterior?

Inicialmente, não podemos confundir as normas de natureza processual com as normas de natureza de direito material, pois a elas será dispensado tratamento diferenciado.

APLICABILIDADE DAS NORMAS PROCESSUAIS DA LEI 14.230/21:

A nova lei de improbidade administrativa em relação às normas processuais se aplicam às ações de improbidade administrativa em curso?

As normas processuais tem aplicabilidade imediata aos feitos em curso, respeitados os atos processuais praticados e as situações jurídicas consolidadas sob a vigência da norma revogada (art. 14 do CPC c/c art. 5º, XXXVI, CR/88).

Nessa toada, cita-se o seguinte julgado do STJ:

“3. A jurisprudência desta Corte Superior é iterativa no sentido de que se aplica, no ordenamento jurídico brasileiro, a Teoria do Isolamento dos Atos Processuais (tempus regit actum), que orienta as regras de direito intertemporal em âmbito processual, segundo a qual o juízo de regularidade do ato praticado deve ser efetivado em consonância com a lei vigente no momento da sua realização” (STJ - AgInt no AREsp 1.594.011/SP, 3ª Turma, j. 08/06/2021).

Logo, normas instrumentais têm aplicação imediata, ou seja, gera efeitos para os processos em curso. Ex.:  uma ação de improbidade administrativa, que começou sob a égide da Lei anterior (em 2020), sendo prolatada a sentença em 2022.  Aplica-se a remessa necessária? NÃO, tendo em vista que a lei 14.230/21 proibiu a remessa necessária, no âmbito da LIA.

A lógica da teoria do Isolamento dos atos processuais é conservar os efeitos dos atos processuais já praticados (ato jurídico perfeito), mas os atos posteriores à vigência da lei a esta estarão submetidos.

APLICABILIDADE DAS NORMAS MATERIAIS DA LEI nº 14.230/2021

Em relação à aplicabilidade das normas de direito material, a aplicação tem características próprias.

Nesse viés, alguns tópicos se destacam nesse imbróglio de aplicação retroativa das normas de direito material da Lei 14.230/21 aos fatos anteriormente praticados

(i) o art. 10, Lei nº 8.429/1992 previa a figura culposa de ato de improbidade administrativa, e agora se exige o dolo. 

Questiona-se: se uma pessoa estava sendo acusada, numa ação de improbidade administrativa, por um ato culposo, com base no artigo 10, esse processo continua ou houve uma “abolitio criminis”?

(ii) o art. 11, Lei nº 8.429/1992 tinha previsão meramente exemplificativa de condutas de improbidade administrativa (numerus apertus) e agora passa a ter a previsão de condutas em enumeração taxativa (numerus clausus).

Questiona-se: houve uma “abolitio criminis” também?

 (iii) novel regime prescricional do art. 23, Lei nº 8.429/1992.

Obs.: Em relação a esse ponto, a lei de improbidade administrativa, por meio da Lei 14.230/21, aumentou o prazo prescricional de 5 para 8 anos, ou seja, houve uma “novatio legis in pejus”. O legislador criou, ainda, vários marcos interruptivos da prescrição.

Vale a pena realçar que o MPF editou, em 12 de novembro de 2021, a orientação nº. 12, por meio da 5ª Câmara de Coordenação e Revisão (CCR de combate à corrupção), no sentido de ocorrência de um retrocesso no sistema de improbidade, se as novas disposições dos atos de improbidade administrativa fossem aplicadas a fatos ocorridos anteriormente ao início de sua vigência, ou seja, o MPF é contra a aplicação retroativa das normas de natureza material previstas na Lei 14.230/21.  Vejamos:

“01. Não se aplicam os novos dispositivos dos arts. 9º, 10 e 11 da LIA alterados pela Lei 14.230/2021 a atos de improbidade ocorridos anteriormente ao início de sua vigência, pois, sendo as regras originais parâmetros de garantia e efetividade da probidade, as novas condutas típicas, se retroagirem, promoverão retrocesso no sistema de improbidade, cujas bases são constitucionais (art. 37, § 4º), atentando também contra os compromissos assumidos pelo Brasil nas Convenções Internacionais contra a Corrupção (OCDE, OEA e ONU), internalizadas como normas supralegais. 

02. Não se aplicam as sanções legais mais gravosas (art. 12, I e II, Lei 14.230/2021) a atos de improbidade anteriores ao início de sua vigência” (Orientação nº 12, de 12/11/2021, 5ª Câmara de Coordenação e Revisão - Combate à Corrupção, Ministério Público Federal).

Em face disso, o Conselho Federal da OAB protocolou uma reclamação no Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP), em 17 Novembro de 2021, contra a orientação da MPF. Vejamos:

O ato impugnado se arvora em revisor do legislativo ao sugerir um descumprimento de um preceito básico em se tratando de direito sancionatório: a retroatividade da lei benéfica. (..) Consequência de um açodamento na persecução foi o fenômeno de anos recentes que, apelidado de ‘Apagão das Canetas’, implicou uma epidemia de não-decisões em diversas instâncias da Administração, prejudicando o atendimento de necessidades básicas da população, em prol de um cumprimento meramente formal (e muitas vezes negativo) das vontades manifestadas pelos órgãos de controle. (..) A reforma legislativa pretendeu conferir um claro discrímen entre o desonesto e o gestor que se perde em um cipoal de regras administrativas. O dolo é o corte necessário e a aplicação do princípio da reformatio in melius, além de fundamento jurídico, consta expressamente no texto da Carta. É a interpretação inclusive do próprio MPF, no parecer n. 12.187/2021, Subprocurador Nicolao Dino, autos do RESP n. 1.966.002/SP: ‘A persecução referente a improbidade administrativa se insere no âmbito do Direito Sancionador e, por coerência sistêmica, a exemplo do que ocorre com os mecanismos de persecução criminal, deve nortear-se pelo postulado da retroatividade da norma mais favorável ao réu, nos termos do art. 5º, XL, da CRFB’” (Reclamação protocolizada pelo Conselho Federal da OAB, no CNMP, datada de 17/11/2021, referente à Orientação nº 12/2021, 5ª Câmara de Coordenação e Revisão - Combate à Corrupção, Ministério Público Federal).

Em relação ao tema da aplicação dos princípio do direito sancionador, a jurisprudência do STJ, antes da Lei 14.230/21, orientava-se no seguinte sentido:

“Improbidade administrativa. Sanção de cassação de aposentadoria. 1. Imposição pelo Poder Judiciário. Impossibilidade. Legalidade estrita em matéria de direito sancionador. Precedentes” (STJ - EREsp 1.496.347/ES, 1ª Seção, j. 24/02/2021).

Assim, como se pode notar, o STJ tem precedente aplicando direito sancionador à ação de improbidade, até mesmo antes da nova lei de 2021; na ocasião, o STJ perfilhou a tese da impossibilidade de aplicação da sanção de cassação de aposentadoria ao agente ímprobo, na medida em que não há previsão legal para tanto.

Recentemente, em novembro de 2021, ou seja, um pronunciamento judicial já no regime vigente, o Ministro relator do REsp 1.712.153/MG proferiu o seguinte despacho:

“Vistos, etc. Trata-se, na origem, de ação de improbidade administrativa ajuizada pelo Ministério Público do Estado de Minas Gerais. A Lei n. 14.230/2021 trouxe mudanças significativas procedimentais e materiais. Entre essas alterações, o legislador destacou a natureza sancionatória da Lei de Improbidade, o que implica a aplicação das garantias correlatas, inclusive, retroação do tratamento mais favorável ao réu, como pode acontecer em relação à prescrição. (..) Ante o exposto, com base no art. 10 do CPC, intimem-se as partes para se manifestarem sobre a eventual aplicação retroativa da Lei de Improbidade, em especial, as mudanças no que se refere ao aspecto sancionador e prescricional” (STJ - REsp 1.712.153/MG, Rel. Min. OG Fernandes, j. 05/11/2021).

Assim, houve a sinalização de aplicação retroativa das normas materiais da lei nova.

Por fim, cita-se o artigo do professor Ricardo Barros Leonel, da USP, em que o autor defende que: (i) para os casos pendentes, deve-se ter uma aplicação retroativa em relação ao acertamento/ocorrência do ato ilícito, sem todavia aplicar sanção; (ii) para os casos definitivamente julgados, o autor defende a garantia constitucional da coisa julgada:

“(..) a nova disciplina da tutela da probidade deve se traduzir, para os casos pendentes, em sentenças de parcial procedência, com acertamento (declaração) da ocorrência do ilícito, sem, entretanto, aplicação de sanção, que na época da decisão condenatória deixou de existir. Há interesse processual na declaração da ocorrência do ilícito, por se tratar de certificação estatal (oferecimento de certeza) a respeito da efetiva ocorrência dos fatos que eram ilícitos. Já nos casos julgados definitivamente, nada restará a fazer. A retroatividade penal benéfica, garantia específica para o processo penal, não deve ser aplicada. A ponderação entre as duas garantias constitucionais (artigo 5º, XL, e 5º, XXXVI) é falso problema. A retroatividade benéfica só se aplica especificamente ao Direito Penal. A coisa julgada material deve ser respeitada no processo civil” (LEONEL, Ricardo Barros. Nova LIA: aspectos da retroatividade associada ao direito sancionador. Disponível: < https://www.conjur.com.br/2021-nov-17/leonel-lia-retroatividade-associada-direito-sancionador#:~:text=A%20Lei%2012.430%2F2021%20vem,ao%20Direito%20Penal%20%5B1%5D.>. Acesso em 17 novembro 2021).

Respostas