Pode o juiz auxiliar uma das partes no processo? Veja o que diz a legislação brasileira

O jornal The Intercept Brasil vazou uma série de conversas entre o Procurador Deltan Dallagnol - coordenador da força-tarefa da Operação Lava-jato em Curitiba - e o ex-juiz, atual Ministro da Justiça e Segurança Pública, Sérgio Moro.

As conversas, efetuadas através do aplicativo Telegram, demonstram uma suposta colaboração entre Moro e os procuradores da lava-jato, em que o juiz teria orientado o Ministério Público e interferido no processo que condenou o ex-presidente Lula no caso do Triplex.

Além disso também foram divulgadas trocas de mensagens entre os membros do MP e o juiz, cujo objetivo era o de impedir que os jornais Folha de São Paulo e El País Brasil pudessem entrevistar o ex-presidente na carceragem da Polícia Federal de Curitiba. Tudo isso seria para evitar que a chapa petista que concorria à presidência ganhasse notoriedade e alterasse os rumos das eleições.

Ainda que não se tenha sido comprovada a veracidade das mensagens, a questão gerou imensa discussão em toda a sociedade sobre a interferência do juiz em processos e a colaboração entre a parte acusadora e o julgador.

Até agora os procuradores e o Ministro alegaram que seus celulares foram hackeados e que, portanto, a divulgação das mensagens é ilegal.

Diante disso, o que diz a legislação brasileira sobre o tema? Pode um juiz e uma das partes colaborarem e decidirem os rumos do processo? Para responder a essas perguntas, é preciso compreender alguns assuntos importantes do direito processual penal.

O Princípio do Juiz Natural

O direito processual penal brasileiro instituiu o que chamamos de princípio do juiz natural, que encontra lastro nos incisos XXXVII e LIII da Constituição de 1988, vejamos:

"XXXVII - não haverá juízo ou tribunal de exceção;
(...)
LIII - ninguém será processado nem sentenciado senão pela autoridade competente;
"

O princípio deve ser compreendido como o direito que cada cidadão tem de saber previamente a autoridade que irá processá-lo e julgá-lo caso cometa uma infração penal, devendo ser estabelecidas regras taxativas de competência para o julgador.

Além disso, está presente a ideia de que as partes sejam julgadas por um juiz imparcial e independente, sem interferência de terceiros interessados que queiram beneficiar ou prejudicar qualquer das partes.

Desse modo a ideia de imparcialidade do julgador é a mais proeminente para a análise do caso em estudo, pois a ideia de interferência de um juiz nos rumos do processo fere de morte o princípio.

Se um juiz aconselha, dá diretrizes, pratica ou deixa de praticar certos atos com o intuito de beneficiar ou prejudicar uma das partes, age em desconformidade com os preceitos constitucionais que regem o processo penal brasileiro.

Princípio do Promotor/Procurador Natural

A doutrina brasileira também admite a ideia de promotor ou procurador natural. Muitos consideram-na uma extensão do princípio do juiz natural, mas não há consenso sobre isso entre os doutrinadores.

No entanto a ideia mais disseminada é a de que todo cidadão tem o direito de ser acusado e processado por uma autoridade independente do Estado, sendo vedada a designação de promotores ou procuradores ad hoc, ou seja, para um fim específico.

Nesse sentido, promotor e procurador devem atuar de forma técnica e dentro das atribuições estabelecidas na lei. Se agir de modo contrário, acaba por ferir os ditames que regem o estado democrático de direito e desfiguram a atribuição do Ministério Público de serem defensores da ordem jurídica democrática.

Suspeição

Muito se falou nos últimos dias sobre o fato de o então juiz Sérgio Moro ser suspeito no caso. Mas do que se trata isso?

As causas de suspeição são aquelas de caráter objetivo, relacionadas a fatos externos ao processo. Podem, inclusive, gerar a incapacidade subjetiva do juiz para atuar no caso. Em suma, o magistrado é suspeito quando se interessa por uma das partes, tanto para fins benéficos quanto prejudiciais.

Dessa maneira, a suspeição é causa de nulidade do processo, a contar da data em que houve o primeiro ato com intervenção suspeita do juiz.

Vejamos o artigo 254 do Código de Processo Penal:

"Art. 254.  O juiz dar-se-á por suspeito, e, se não o fizer, poderá ser recusado por qualquer das partes:
I - se for amigo íntimo ou inimigo capital de qualquer deles;
II - se ele, seu cônjuge, ascendente ou descendente, estiver respondendo a processo por fato análogo, sobre cujo caráter criminoso haja controvérsia;
III - se ele, seu cônjuge, ou parente, consangüíneo, ou afim, até o terceiro grau, inclusive, sustentar demanda ou responder a processo que tenha de ser julgado por qualquer das partes;
IV - se tiver aconselhado qualquer das partes;
V - se for credor ou devedor, tutor ou curador, de qualquer das partes;
Vl - se for sócio, acionista ou administrador de sociedade interessada no processo.
"

O magistrado não pode, portanto, ter qualquer vínculo objetivo ou subjetivo com o processo, em especial com as partes, uma vez que isso quebra a neutralidade do julgador e permite que o curso da ação seja enviesado.

A suposta colaboração entre Moro e o Ministério Público

Diante do exposto, se comprovado que as mensagens trocadas entre Sérgio Moro e os procuradores do MP são verdadeiras, estaremos diante de um caso gravíssimo de violação dos princípios e das regras que regem o processo penal.

A questão é grave, pois, ainda que esteja inserida em investigação de fatos sensíveis, envolvendo atores importantes do poder público brasileiro, não se pode, em hipótese alguma, relaxar ou até mesmo violar garantias processuais para obter qualquer resultado que seja, condenatório ou absolutório.

Conforme demonstrado, o rito processual foi criado para que não houvesse a possibilidade de instauração de tribunais de exceção, ou seja, para que ninguém fosse submetido a um processo penal totalitário, que não permitisse análise técnica dos fatos e dos direitos, apenas ativismo processual.

Um juiz não deve, jamais, orientar investigações, não é sua atribuição. Inclusive, na fase de investigação, o juiz deve ser aquele responsável por garantir que excessos não sejam cometidos. Sendo assim, é incompatível a ideia de que um magistrado questione a demora nas investigações. Quem deve se preocupar com isso é a acusação.

Não pode um juiz atuar como acusador e julgador de um mesmo caso. Isso impossibilitaria qualquer chance de defesa da parte ré. Desequilibraria - e muito - a balança. A colaboração entre Juiz e MP, nesse sentido, violaria o sistema acusatório e colocaria em xeque a imparcialidade de todas as partes do processo.

Se confirmada, a veracidade do conteúdo, ainda que as conversas tenham sido obtidas ilicitamente, estaremos diante de uma hipótese de suspeição, que acarretará na nulidade do processo que culminou na condenação - e prisão - do ex-presidente Lula. Trata-se de um caso muito notório e que envolve instituições importantíssimas para o regime republicano e democrático que desejamos manter. Isto porque as provas seriam ilícitas para investigar os sujeitos (Moro e demais procuradores), mas não seriam para anular os processos em que atuaram.

Então, o caso é gravíssimo e estamos diante de uma questão muito séria, do ponto de vista jurídico e político. Todo o sistema processual penal brasileiro poderá ficar em xeque caso os fatos ventilados pelas conversas sejam verdadeiros.

O que nos resta agora é confiar nas instituições brasileiras para que averiguem o caso e, se confirmadas as denúncias ventiladas pelo Intercept, que a legislação pátria seja de fato mantida incólume e posta em prática da forma como deve ser.

Mas, nós do Master Juris queremos saber o que você acha disso tudo. Deixe aqui um comentário a respeito e continue nos acompanhando diariamente!

Grande abraço e até a próxima.

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