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Direito Constitucional (Daniel Sarmento)

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  1. Trajetória Histórica e Bases Filosóficas
    4 Tópicos
  2. História Constitucional Brasileira
    2 Tópicos
  3. Poder Constituinte Originário
    1 Tópico
  4. Poder Constituinte Derivado
    2 Tópicos
  5. Normas Constitucionais
    2 Tópicos
  6. Interpretação Constitucional
    5 Tópicos
  7. História e características dos Direitos Fundamentais
    4 Tópicos
  8. Direitos Fundamentais em Espécie
    12 Tópicos
  9. História do Controle de Constitucionalidade
    1 Tópico
  10. Legitimidade Democrática. Tipos de Constitucionalidade e Formas de Controle
    1 Tópico
  11. Controle Abstrato de Constitucionalidade
    4 Tópicos
  12. Controle Concreto de Constitucionalidade
    1 Tópico
  13. Leis Complementares e Ordinárias
    1 Tópico
  14. Medida Provisória. Tratado
    2 Tópicos
  15. Federalismo. Partilha de Competências e Intervenção
    2 Tópicos
  16. Separação de Poderes e Sistemas Eleitorais
    2 Tópicos
  17. Aspectos específicos dos Poderes da República
    6 Tópicos
  18. Ministério Público
    2 Tópicos
  19. Princípios da Ordem Econômica e modalidades de Intervenção do Estado na Economia
    2 Tópicos
Aula - Progresso
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História do Constitucionalismo

E-mail do Prof. Daniel Sarmento: sarmento_daniel@yahoo.com.br

Bibliografia recomendada: Direito constitucional: teoria, história e métodos de trabalho - Daniel Sarmento → este livro trata da primeira parte do presente curso, quando o curso sair da parte de Teoria da Constituição, o professor indicará outros livros.

Constitucionalismo: Trajetória Histórica e base filosófica

O professor costuma, em suas aulas, fazer uma análise interdisciplinar e crítica a respeito dos institutos.

Há quem fale de um “constitucionalismo antigo”, em livro clássico do autor Charles Mack Ewing, fala-se a respeito do constitucionalismo antigo e moderno, aludindo ao modelo de constitucionalismo existente na Grécia e Roma. O Prof. Sarmento, particularmente, acha que o constitucionalismo é uma construção da modernidade, o que houve na antiguidade e Idade Média foram ideias que, de alguma maneira, influenciaram o surgimento do constitucionalismo mais a frente, tangenciado-o em alguns aspectos, só que aquilo ainda não era constitucionalismo.

O que se falava, na antiguidade, quando se falava a respeito de “Constituição”? Na obra “A Constituição de Atenas[1]”, Aristóteles tratava muito mais da descrição do que da prescrição. Aristóteles falava da Constituição de Atenas da mesma forma que hoje se falaria da constituição de um corpo humano, ou seja, Aristóteles falava como funcionava a comunidade política, como ela deliberava, propondo possíveis mudanças que fariam com que a comunidade política funcionasse melhor.

Assim sendo, o sentido dado na antiguidade para Constituição até possui alguma proximidade do conceito moderno de Constituição como realidade política, não como uma norma jurídica. O que não estava presente na Constituição da antiguidade é a compreensão típica da modernidade que veio, sobretudo, com o Iluminismo, da Constituição como sendo uma “limitação jurídica para o exercício do Poder voltada, sobretudo, para a garantia das liberdades individuais”. Essa não era uma concepção da antiguidade (seja na Grécia ou em Roma), sobretudo porque a compreensão que se tinha sobre as relações políticas naquele contexto é muito diferente da compreensão moderna das relações políticas.

É comum a ideia de “organicismo”: Aristóteles quando falava a respeito de uma determinada comunidade política, ele dizia que “cada pessoa era como um órgão em um corpo humano”, assim, a prioridade é do corpo humano, não do órgão, o órgão existe para o corpo, e não vice-versa, se for necessário a eliminação de um órgão para o bem de todo o corpo, isso deverá ser feito (da mesma maneira que um sujeito às vezes precisa amputar um membro necrosado para não morrer).

Assim, não havia essa ideia de que os indivíduos eram um fim em si e de que o Poder deveria ser estruturado de uma maneira que servisse aos direitos e interesses de cada indivíduo. Isso não quer dizer que algumas ideias de limitação do Poder já não se apresentassem na antiguidade. Exemplificadamente, é muito citada a famosa peça “Antígona”, de Sófocles, onde, no diálogo da Antígona com o rei Creonte[2], onde o rei pergunta como que ela (Antígona) ousou desobedecer sua lei, recebendo como resposta que “acima da sua lei (lei dos homens), há uma outra lei superior, que é uma lei que vem dos deuses”.

Isso não é uma ideia de Constituição, mas sim uma fundamentação teológica para a limitação do Poder, mas de alguma maneira, estava presente uma compreensão de que o Poder Político deveria sofrer algum tipo de limitação. Algumas compreensões jusnaturalistas (mesmo que um jusnaturalismo antigo), já apresentavam esta ideia de limitação do Poder, que é uma ideia fundamental e central do constitucionalismo, permeando a compreensão moderna de Constituição.

Apesar desta ideia do professor Sarmento como o constitucionalismo sendo um fenômeno moderno, é comum a ideia de que a primeira Constituição foi a Magna Carta, o Rei João Sem-Terra, na Inglaterra, de 1215, como um fruto da Idade Média. De acordo com o Prof. Sarmento, a Magna Carta está na “pré-história” do Constitucionalismo, envolvendo uma ideia de limitação do Poder.

Ela não é uma Constituição no sentido moderno, a Magna Carta foi um acordo feito pelo rei, que queria apoio da nobreza inglesa para se engajar em uma guerra contra a França, ele sentia que os nobres não os apoiavam, de modo que ele opta em fazer uma espécie de “pacto” com esses nobres, no qual o rei pede para ser reconhecido como soberano, aceitando-o como rei e, em contrapartida, o rei se sujeitará à alguns limites em relação à nobreza inglesa. Limites como “no taxation without representation”, ou seja, a legalidade tributária, porém, essa Magna Carta não tinha caráter universal, tratando exclusivamente da relação do rei João Sem-Terra com os barões ingleses. A Magna Carta não impedia o rei de cobrar o que quisesse dos camponeses, por exemplo. Isso acontecia porque as relações sociais na Idade Média, e em toda a antiguidade, eram relações estamentais, onde não se concebia o indivíduo como uma pessoa intrinsecamente igual a outras pessoas e, nessa qualidade, merecedoras do mesmo respeito e mesmo estatuto jurídico de direitos e deveres. Os direitos e deveres que cada um tinha dependiam intrinsecamente da sua inserção em um dado estamento social. Assim sendo, o nobre possuía um regime diferente do camponês.

Na Grécia, quando Aristóteles falava que “igualdade é tratar os iguais com igualdade e os desiguais com desigualdade”, ele estava dando um recado anti-igualitário, ou seja, as pessoas são desiguais sendo errado (conforme exemplo de Aristóteles), tratar um escravo da mesma forma que trata um cidadão de Atenas.

A ideia de que as pessoas possuem os mesmos direitos e deveres já estava presente em algumas Constituições, sejam teológicas ou em algumas vertentes da filosofia, mas isso não foi convertido para instituições políticas. Do ponto de vista institucional, viva-se em um mundo estamental, na qual na havia espaço para nada como a compreensão da Constituição moderna.

Pode-se dizer que o Constitucionalismo é um filhote do Iluminismo, possuindo uma relação direta com o antropocentrismo do Iluminismo, com a descrença do Iluminismo da autoridade que viesse de origem divina, ou que se baseasse só na tradição, e buscava de alguma maneira fundar racionalmente o exercício do Poder. Essas são bases importantes que propiciaram do advento do constitucionalismo, este foi o “solo” no qual o constitucionalismo pode “brotar”.

Não foi apenas isso que levou ao advento do constitucionalismo, alguns fatores não foram tão nobres assim, houve uma convergência entre o discurso do constitucionalismo (de afirmação da igualdade, liberdade e contenção do Poder) e os interesses de classe da classe social que estava ascendendo (a burguesia). No modelo estamental pré-moderno, o sujeito ainda estava “por baixo”, tendo menos direitos, e era essencial para a burguesia a afirmação da igualdade formal e a contenção do Poder para permitir que as relações comerciais vicejassem, ou seja, a presença de leis gerais e abstratas, que não está submetida ao governante de ocasião, e a proteção da propriedade privada (que também era essencial aos interesses de classe da burguesia).

Com essas ideias apresentadas, o Prof. Sarmento não deseja “desmerecer” o constitucionalismo, mas sim explicar o que realmente aconteceu, de que o constitucionalismo, além de ter sofrido influências importantes do movimento iluminista (especialmente pelo seu discurso antropocêntrico e emancipatório), ele também foi a condensação de certos interesses de classe da burguesia.

Pode-se adicionar a isso alguns fatores importantes, por exemplo, o contexto de reforma religiosa: antes da reforma, era como se a Igreja Católica detivesse o “monopólio da verdade”, ditando o que é certo e o que é errado, o que é justo e injusto. Com a reforma, essa ideia é quebrada, passando a ter pluralidade religiosa. Assim, fica difícil, deste momento para frente, fundamentar o poder político na vontade divina, porque os indivíduos não mais compartilhavam a mesma religião.

E, talvez, ainda mais importante do que isso: reforma e contrarreforma no cenário do Estado absoluto.

O que acontecerá? No absolutismo havia um importante princípio: quem escolhe a religião do Estado é o rei, e com muita frequência, esses reis perseguiam quem não seguia sua religião (a história da Europa é repleta de exemplos assim). Isso gerou um “caldo” social e cultural de rebelião contra esse estado de coisas. Os indivíduos começaram a sentir a necessidade de limitar o poder do monarca e garantir liberdades, daí porque a liberdade religiosa foi a primeira das liberdades no constitucionalismo.

Em suma: o constitucionalismo surgiu como reação às perseguições religiosas que ocorriam na Europa, tendo enorme influência nos Estados Unidos (outro berço do constitucionalismo), país este que foi colonizado em boa parte por pessoas que fugiam da perseguição religiosa ocorrida na Europa.

Quando surge o constitucionalismo, ele vem acompanhado de um discurso de justificação interessante. Uma boa síntese desse discurso pode ser encontrado nas teorias do contratualismo (sobretudo nas suas vertentes liberais), o exemplo mais conhecido disso é o exemplo de John Locke, no livro “O Segundo Tratado Sobre o Governo”.

Antes de adentrar na ideia de Locke, deve-se primeiramente aludir a toda ideia do contratualismo: na antiguidade, como dito, buscava-se justificar o estatuto a que estava submetido o indivíduo com base nos interesses da pólis (ou seja, nos interesses coletivos), o contratualismo é a inversão desta ideia, ou seja, é a ideia de que se terá Estado e sociedade civil porque isso é melhor para cada indivíduo. No estado da natureza, anterior à celebração do contrato social, os indivíduos viviam pior do que com a celebração deste contrato social, estando mais sujeito aos riscos e às violências provocadas por outras pessoas.

Neste cenário, é melhor para cada pessoa estar submetida a um Estado, assim, passa-se a justificar a existência do Estado a partir dos indivíduos. Até então, as relações políticas eram vistas ex parte principis (pelo ângulo dos governantes), elas passam a ser enxergadas ex parte populi (pelo ângulo do povo). Isso tem sua caracterização mais forte nas doutrinas liberais do contratualismo, como as de John Locke, que dizia que fundaria uma sociedade civil, só que este governo será limitado, tendo que respeitar direitos naturais. Então, ao celebrar o contrato social, o indivíduo cede apenas algumas de suas liberdades, ao mesmo tempo que ele retêm outras. E a violação dessas liberdades pode, inclusive, ensejar, o legítimo exercício do direito de resistência.

Há, aqui, a construção da ideia do Poder Limitado em prol da liberdade individual, e o constitucionalismo se valeu de dois artifícios e, mais a frente, incorporou uma terceira.

Quais são esses pilares? O primeiro pilar é um pilar institucional. A engenharia do Estado voltava-se, antes de tudo, à limitação do Poder. Montesquieu, que não era um contratualista, explicou isso muito bem, ao justificar a separação dos Poderes, ele dizia que é preciso, pela disposição das coisas, que “o Poder freie o Poder”. Atribuía-se funções diferentes a órgãos distintos ocupados por autoridades diferentes para evitar uma concentração excessiva de Poder, o que representaria uma ameaça à liberdade individual. Então o objetivo da separação dos Poderes era a contenção do Poder, o ideário do constitucionalismo.

Examinando a construção do federalismo nos Estados Unidos, também havia este objetivo de contenção e legitimação do Poder. Então, um ponto muito importante do constitucionalismo diz respeito à ideia de fixar uma certa “arquitetura estatal” de natureza limitada, que ensejasse a contenção do Poder. O freio aos governantes com mecanismos de salvaguarda da liberdade dos governados.

O segundo pilar diz respeito à garantia de liberdades individuais. Liberdades que naquele contexto do constitucionalismo liberal (dos séculos XVIII e XIX) eram vistas como direitos negativos voltados contra o Estado, era o que o Estado não podia fazer. Era como que uma redoma posta ao redor do indivíduo para salvaguardar o indivíduo contra os abusos dos governantes.

Liberdade de religião, de expressão, direito de propriedade… naquele contexto, os direitos não só eram negativos, mas tinham como foco o Estado. Era como se a mão invisível do mercado equacionasse os problemas que surgissem no âmbito da sociedade civil. O adversário dos direitos era o Estado, isso tem a ver com a hegemonia da burguesia e com o modelo de Estado imediatamente anterior ao advento do constitucionalismo, que era o Estado absoluto. Então quando se pensava em direitos, era direito como sendo uma liberdade negativa, não envolvendo prestações positivas por parte do Estado.

O terceiro pilar foi o que demorou mais tempo para se aproximar da realidade, é o pilar que buscava a legitimação do Poder político pelo consentimento dos governados. No pensamento político moderno o ícone dessa ideia foi Jean-Jacques Rousseau, que de certa maneira, recuperou uma ideia que havia aparecido na Grécia Antiga e que tinha ficado esquecida durante muito tempo, ou seja, a ideia de democracia, ainda que na Grécia Antiga não havia uma democracia como entendida hoje (uma vez que era um governo no qual não participavam os escravos, as mulheres, os estrangeiros e seus descendentes, etc), ou seja, apenas um percentual pequeno da população participava, deliberando em praça pública (democracia direta).

Rosseau acabou por exercer uma influência muito forte na denominada “esquerda” do constitucionalismo, sendo um pensador muito influente entre os jacobinos, no contexto da Revolução Francesa. Contudo, Rosseau era contra a representação política, ele chegava a dizer que só se era livre “no dia das eleições”, Rosseau defendia, desta forma, a democracia direta, nos moldes gregos, funcionando somente em comunidades políticas muito pequenas.

Todavia, evidentemente não era possível transportar essa ideia para o contexto da Europa no século XVIII, no qual os Estados já possuem milhões de pessoas, muito mais complexo do que a Grécia Antiga.

Deste modo, essa compreensão vai passar por uma mudança muito importante, surgindo assim a representação política, no qual as pessoas elegem representantes que governarão e legislarão em seu nome. Entretanto, como dito, esse foi pilar que mais demorou para se tornar realidade, basta pensar que o sufrágio universal só surgiu no século XX.

É curioso perceber como o constitucionalismo buscava justificar a exclusão das pessoas: a ideia de “soberania nacional”, criada pelo abade Emmanuel Joseph Sieyès (em contraste com a ideia de “soberania popular”, de Jean Jackes Rosseau). Para Sieyès, a nação não eram as pessoas presentes em um determinado momento histórico, há a evocação, dentro da ideia de nação, dos antepassados e as gerações futuras daquele povo. Logo, sendo um conceito tão incorpóreo, a nação pode ter aqueles que sejam seus porta-vozes, ou seja, pessoas mais esclarecidas, que tenham mais tempo para se inteirar dos assuntos públicos. Isso era usado como uma justificativa para a exclusão do direito de voto.

Então, essa ideia da democratização política apareceu no constitucionalismo, logo, a busca da legitimação do Poder não mais se encontrava na vontade divina e nem na tradição, mas no consentimento dos governados. Porém essa ideia demorou muito tempo para ser concretizada nos Estados, e ainda não possui toda a abrangência necessária.

Pode-se falar em três modelos de constitucionalismo naquele contexto: o modelo inglês, francês e norte-americano. O modelo inglês é um pouco diferente do que foi falado até agora (ou seja, do constitucionalismo como fruto do iluminismo, que se apoia na ideia de razão e desconfia das tradições). O modelo inglês não era assim, a Inglaterra possui uma história política singular, sendo um dos primeiros países a estipular limitações ao exercício dos governantes, a revolução inglesa é mais de um século anterior à revolução francesa e à independência dos Estados Unidos, ocorrendo a partir de premissas e pressupostos um pouco diferentes.

Assim, o constitucionalismo inglês busca valorizar tradições, mas lendo essas tradições sob uma ótica liberal. Por outro lado, é um constitucionalismo completamente refratário à ideia de ruptura,[3] tanto que não se desenvolve uma teoria do poder constituinte na Inglaterra. Para o inglês, a Constituição é muito mais a decantação de tradições liberais que podem, eventualmente, serem revertidas para textos escritos, mas esses textos não são concebidos como a fonte dos direitos que consagram. Exemplificadamente, pensando nos principais documentos constitucionais ingleses (Bill of Rights, do século XVII, habeas corpus act, etc), o inglês não acha que o direito venha dali, esses documentos apenas consagram algo que já existia.

Por outro lado, a compreensão inglesa acabou não levando à elaboração de uma Constituição escrita, o que não significa dizer que não existam textos escritos no direito constitucional inglês, mas não se quis agregar esses textos esparsos em um único documento, e nem se concebe algum desses documentos como a fonte do direito constitucional.

Outra característica do modelo inglês é que ele não afirmava a possibilidade do Poder Judiciário invalidar atos normativos considerados incompatíveis com essas tradições liberais tidas como constitucionais. Em outras palavras: não existe a figura do controle de constitucionalidade, ou seja, não se supõe que o Judiciário tenha que ter o poder de invalidar um ato por violar a Constituição. Essa ideia começa a mudar no Reino Unido, mas ainda é algo embrionário.

Isso não quer dizer que essas tradições constitucionais sejam menos protegidas do que aqui. A proteção decorre muito mais de uma cultura constitucional do que de um desenho institucional confiando este papel ao Poder Judiciário. Aqui está tão enraizado, que se imagina que se, eventualmente, o Parlamento inglês fizer uma lei contra a Constituição, os parlamentares não se elegerão novamente, porque o povo inglês não aceitará.

Entretanto, com esse movimento de internacionalização dos direitos, o Reino Unido começava a ser condenado por instâncias como a Comissão Europeia dos Direitos Humanos, Tribunal de Justiça da União Europeia, dentre outros, de modo que, o povo inglês concluiu que era melhor possuírem um “documento” de direitos, aprovando assim o “Human Rights Act”, que internalizou a Convenção Europeia de Direitos Humanos, e foi dado ao Poder Judiciário o poder de dizer que determinada lei viola o Human Rights Act. Ao dizer isso, abre-se um processo legislativo mais simplificado para a reforma daquela legislação, e mobiliza-se uma certa energia que provavelmente vai gerar a revogação daquela legislação. Mas até hoje a Inglaterra não possui um controle de constitucionalidade forte, que permita ao Judiciário invalidar uma lei contrária ao que se concebe como Constituição.

Esse modelo inglês de constitucionalismo teve muita influência, porque a Inglaterra foi a superpotência mundial por muito tempo, mas hoje esse é um modelo francamente recessivo. Além do Reino Unido, pode-se considerar a Nova Zelândia e Israel como países que seguem um modelo próximo a este.

O modelo francês é um modelo de ruptura, de rompimento é contrário à valorização das tradições, é um modelo que surgiu com a revolução francesa, com a afirmação da existência de um Poder Constituinte. A teoria do Poder Constituinte é originariamente francesa. É um modelo voltado à valorização da razão abstrata, e não de tradições concretas. Agora, é um modelo que, tal como o inglês, não apostou no Judiciário como um garantidor da Constituição. Hoje até existe controle de constitucionalidade na França, mas isso é uma novidade, surgida na França em 1958.

O francês confiava no legislador para ser o guardião da Constituição. A história ajuda a compreender o porquê disso. Quando veio a Revolução Francesa, o Poder Judiciário era o antigo regime, e o Parlamento era a força nova, que estava antenado com os valores do constitucionalismo, de modo que a pior aposta possível seria a do Judiciário. Os jacobinos, por exemplo, tinham horror ao Poder Judiciário, que era explicitamente corrupto. Para financiar sua vida de luxo, os reis absolutistas franceses começavam a vender cargos, dentro os quais, os cargos de juiz.

Isso ajuda a compreender, inclusive, algumas questões centrais da teoria moderna do direito (como a escola de exegese, na qual o juiz era a “boca que pronuncia as palavras da lei”). Outro instituto proveniente dessa desconfiança dos franceses em relação ao seu Judiciário é referé legislatif, ou seja, quando a lei fosse ambígua, havia uma proibição de que o juiz interpretasse a lei, sendo necessário consultar o Parlamento.

Essas ideias perduraram durante muito tempo, como sendo uma compreensão antagônica à hegemonia do Poder Judiciário.

Isso significa que os franceses não valorizavam a Constituição? Não, mas sim que eles achavam que o melhor garantidor da Constituição não era o Poder Judiciário. A França apostava em um outro modelo institucional.

A história francesa é muito turbulenta, os franceses estão na sua 14ª Constituição, de modo que o ideário do constitucionalismo estava ali presente, mas a tradução desse ideário sob o ponto de vista normativo não se dava pela Constituição. Então tem muita gente que dizia que a Constituição francesa era o Código de Napoleão, para o qual estavam vertidos os seguintes princípios do constitucionalismo liberal: lei geral e abstrata para todos; autonomia da vontade; proteção da propriedade privada, dentre outros.

Esse modelo francês exerceu bastante influência inclusive no Brasil. O modelo de constitucionalismo do império brasileiro gravitava em torno do modelo de constitucionalismo francês, e muitas das atuais compreensões jurídicas brasileiras estão embebidas dessa cultura jurídica francesa.

Agora, o modelo que acabou tornando-se hegemônico foi o norte-americano, para compreender melhor esse modelo, é preciso relembrar a história norte-americana.

Os Estados Unidos eram 13 colônias da Inglaterra que obtiveram independência, e no primeiro momento pós independência, essas colônicas formaram uma confederação, que não estava funcionando, daí, a partir da convenção da Filadélfia, cria-se um Estado Federal.

No constitucionalismo americano, entrarão elementos diferentes que comporão uma frente nova do que deve se entender como Constituição.

Em primeiro lugar, não havia confiança no Parlamento (uma vez que, quando o norte-americano pensava no Parlamento, ele imaginava o Parlamento inglês que o tinha oprimido). Assim, os americanos conceberam a Constituição como sendo uma norma jurídica que pode ser invocada pelo Poder Judiciário e que pode levar à invalidação de leis. Embora isso não esteja escrito em lugar nenhum na Constituição norte-americana, já era dito, por exemplo, no ensaio “Federalista n° 79”, de James Hamilton, que o Poder Judiciário era um garantidor da Constituição.

O constitucionalismo norte-americano também possui um forte componente liberal, em que se manifesta um certo medo do “despotismo das maiorias”, o que não deixa de ter um certo viés elitista, que pode ser percebido também em algumas discussões travadas no contexto da elaboração da Constituição norte-americana.

Será percebido que alguns institutos hoje usados em um sentido nobre (exemplo: “o papel da jurisdição constitucional para a proteção de minorias que podem ser atropeladas pelo designo das maiorias”), isso quando pensado no contexto dos Estados Unidos, a “minoria” era o rico. Então, o medo era que a maioria (os pobres), fizessem leis, para distribuir a propriedade dos ricos, ou o perdão de dívidas.

Por outro lado, também havia um elemento republicano, da valorização de um governo exercido pelo povo. Isso é verificado, por exemplo, no preâmbulo da Constituição norte-americana que começa falando “nós, o povo…”.

O modelo do constitucionalismo norte-americano vai envolver, ainda, a garantia de direitos individuais (embora esses direitos não estivessem presentes no texto original da Constituição). E sob o ponto de vista institucional, havia a ideia de se pensar na Constituição como norma e o Judiciário como garantidor desta norma, podendo invalidar decisões do Legislativo que afrontem essas normas.

A compreensão norte-americana, que era absolutamente minoritária, ao ponto que o controle de constitucionalidade norte-americano do século XIX era considerado como uma excentricidade americana. Tanto que na década de 20 do século passado, o jurista francês Edouard Lambert escreveu o livro denominado “O governo dos juízes”, mostrando a excentricidade que era vista na época pela ideia de que um juiz poderia controlar as medidas do legislador.

Só que, sobretudo depois da Segunda Guerra Mundial, esse modelo foi se tornando hegemônico, e isso é muito visto até hoje no Brasil, onde há um certo protagonismo do Poder Judiciário que levanta uma série de questões importantes, como a compatibilidade desse protagonismo dos juízes com a própria democracia.

Voltando agora ao estudo do constitucionalismo sob uma perspectiva mais ampla: a primeira compreensão sobre o papel do constitucionalismo era uma compreensão que correspondia, no âmbito da economia política, à aposta na mão invisível do mercado, no qual as Constituições apenas limitavam o Estado e o papel do Estado era o de garantir segurança, propriedade privada, dentre outras obrigações muito pontuais e diminutas.

Isso mudará significativamente no começo do século XX, através de uma série de críticas a este modelo ao final do século XIX. Exemplificativamente, o marxismo criticava essa ideia, dizendo que esse discurso era “para inglês ver”, não se aplicando na prática. Havia críticas ainda por parte dos socialistas utópicos e da doutrina social da Igreja.

Em síntese, apontava-se que a situação concreta das populações submetidas a esse constitucionalismo liberal não corroborava o ideal de constitucionalismo que havia nutrido a elaboração daquelas Constituições. Ao se pensar, por exemplo, no ideário de “igualdade, liberdade e fraternidade” da Revolução Francesa, para Estados no final do século XIX, no contexto da Revolução Industrial via-se, nas fábricas, crianças de 8 anos realizando jornadas de trabalho de 16 horas e mulheres parindo no horário de serviço, o Estado absenteísta não dava conta destas questões. Houve, deste modo, movimentos reclamando por mudanças na postura do Estado, buscando reconhecimento de novos direitos. A urbanização facilitou a eclosão desses movimentos.

Em alguns Estados, isso se deu de maneira democrática, a expansão da democracia conduziu a isso. Quem inventou o discurso da geração de direitos foi um sociólogo inglês do século passado denominado T. H Marshal, ele conta como se deu a evolução dos direitos na Inglaterra. Ele diz que, a partir do século XIX, se começou a ampliar quem tinha direito de voto, na medida em que se aumenta a base eleitoral, as demandas dessas parcelas da população que até então eram excluídas podiam ser trazidas para dentro do direito, e isso foi levando a uma reformulação do Estado inglês, que começou a prestar outros serviços, preocupar-se com a questão da miséria, surge uma rede de proteção social, a previdência social, etc.

Em outros Estados, o processo foi diferente, pode-se olhar, por exemplo, o surgimento do wellfare state na Alemanha, que seguiu outra lógica. O Estado do bem-estar social se deu durante o governo Bismark, que era autoritário (esse wellfare state era uma resposta ao medo da eclosão de revoluções socialistas), com isso, ia-se obtendo conquistas.

Agora, nem sempre a mudança do Estado liberal para o Estado social ocorreu no contexto do constitucionalismo, no século XX (sobretudo no período entre a Primeira e a Segunda Guerra Mundial), foi um período em que se criticou muito o ideário do constitucionalismo, e críticas que às vezes queriam o Estado do bem-estar social (por exemplo, o nazismo e fascismo eram um Estado de bem-estar social), na ditadura Vargas foi o período em que os direitos sociais surgiram no Brasil.

Contudo, após a Segunda Guerra Mundial, houve uma tendência de se buscas conciliar a lógica do Estado social com o constitucionalismo. Assim, muitas das Constituições elaboradas após a Segunda Guerra Mundial, ao lado dos direitos individuais clássicos, consagrariam direitos sociais (saúde, educação, previdência, etc.). O alvo dos direitos não será mais o Estado e seus governantes, mas vai começar a se pensar, por exemplo, em direitos trabalhistas, a projeção dos direitos no campo das relações privadas, etc.

Mesmo as liberdades tradicionais, em vez de serem pensadas apenas como sendo direitos negativos, se verificará que o Estado precisa agir para assegurá-las, protegendo-as de ameaças de outros particulares ou assegurando as condições materiais sem as quais não é possível o exercício daquela liberdade.

Um exemplo tipicamente brasileiro ajuda a compreender essa questão: uma favela dominada por traficantes e milicianos em que haja toque de recolher, neste caso, a liberdade de ir e vir, neste caso, não é a abstenção do Estado, é preciso a presença do Estado para garantir essa liberdade.

No cenário do constitucionalismo social, aqueles princípios institucionais, do constitucionalismo liberal, também serão reformulados, logo, a separação dos Poderes será relativizada, o federalismo será repensado através de um federalismo de cooperação, com competências comuns e concorrentes. As Constituições serão mais ambiciosas, tratando de mais assuntos, como economia e família. Então a Constituição não será mais a lei do Estado, a disciplinar a organização do Estado e sua relação com o cidadão. Ela muitas vezes irá, também, normatizar campos da vida social em que o Estado não está necessariamente presente. Alguns direitos, que no constitucionalismo liberal, eram vistos como absolutos ou quase absolutos, vão ser relativizados, sendo submetidos a um novo olhar.

Exemplo: o direito de propriedade → na Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789, usará a palavra “sagrada” para designar o direito à propriedade (sendo que a Revolução Francesa apresentou fortes componentes anti religiosos). Na Constituição de Weimar, sendo um marco do constitucionalismo liberal (de 1919), possui um artigo dizendo que “a propriedade obriga”, ou seja, a propriedade não era mais vista como um direito, mas também como um dever. Se passa a falar ainda em função social da propriedade.

Então, há mudanças importantes na maneira como se compreende os direitos e na maneira como se compreende o Estado e o seu papel.

Mesmo em países onde as Constituições são anteriores ao advento do Estado de bem-estar social, essas mudanças terão impactos importantes no campo da interpretação, por exemplo, nos Estados Unidos, o Estado Social não vai entrar na Constituição com direitos sociais, mas a Constituição não será mais lida como um obstáculo à implementação de políticas sociais.

Questões de Concurso:

Questão 1

CESPE/CEBRASPE – Procurador do Estado de Alagoas/2009

O constitucionalismo, como movimento político e jurídico, destinado a estabelecer os chamados Estados modernos, com a fixação de mecanismos de limitação e repartição do poder estatal, sobretudo para a proteção do indivíduo contra o arbítrio estatal, surgiu com

a) a Revolução Industrial de meados do século XVIII.

b) as revoluções liberais burguesas do século XVIII.

c) as revoluções proletárias do século XX.

d) a Revolução Tecnológica do século XXI.

e) a criação do chamado Estado do Bem-Estar Social, Welfare State.

Gabarito: B

Questão 2

ESAF – Analista de Finanças e Controle do Ministério Público/2013

Assinale a opção correta.

a) A “Constituição-Garantia” é a típica constituição formatada sob a égide do Welfare State, em que consta grande rol de direitos sociais e possui nítido caráter intervencionista no âmbito econômico.

b) Emmanuel Sieyès foi importante teórico da doutrina do Poder Constituinte e sustentou que a titularidade do Poder Constituinte pertencia à nação.

c) Segundo a doutrina tradicional, a Constituição Federal de 1988 pode ser categorizada como promulgada, escrita e semântica.

d) Entre os fundamentos da República Federativa do Brasil expressamente previstos na Constituição Federal de 1988, encontram-se a soberania, o caráter republicano e a dignidade da pessoa humana.

e) O Supremo Tribunal Federal não aceita a eficácia horizontal dos direitos fundamentais.

Gabarito: B

Questão 3

IBADE – Agente Penitenciário da Secretaria de Estado de Segurança e de Direitos Humanos/2017

“Os direitos políticos formam a base do regime democrático. A expressão ampla refere-se ao direito de participação no processo político como um todo, ao direito ao sufrágio universal e ao voto periódico, livre, direto secreto e igual, à autonomia de organização do sistema partidário, à igualdade de oportunidade dos partidos políticos. Nos termos da Constituição, a soberania popular se exerce pelo sufrágio universal e pelo voto direto e secreto e, nos termos da lei, mediante plebiscito, referendo e iniciativa popular(art. 14).”

(MENDES, Gilmar Ferreira, Curso de Direito Constitucional, 11ª edição, São Paulo, Saraiva, 2016, p. 739).

Sobre o tema, assinale a alternativa correta.

a) Como o direito de sufrágio é universal, os analfabetos têm a obrigação de votar.

b) Segundo a jurisprudência do Tribunal Superior Eleitoral, têm direito de votar aqueles que completarem a idade mínima de 16 anos no ano da respectiva eleição.

c) A eleição dos vereadores efetiva-se pelo modelo critério majoritário de distribuição de vagas.

d) O direito de votar e facultativo para os brasileiros naturalizados.

e) O sufrágio censitário não é previsto na Constituição de 1988, mas esteve presente no ordenamento jurídico pátrio em outras Constituições.

Gabarito: E


[1]Há controvérsia em relação ao título, que também é denominado como “A Politeia de Atenas”

[2]Na peça, o irmão da Antígona morreu no campo de batalha e o rei Creonte, de Tebas e tio da Antígona, proibiu que o corpo do irmão da Antígona fosse enterrado, e Antígona quis desobedecer a esta ordem.

[3]Tanto o constitucionalismo francês como o norte-americano vão conceber essa ideia de um “poder constituinte”, que rompe com o passado, refundando a comunidade política. Isso não faz o menor sentido para o inglês.

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